Exaltar as belezas e peculiaridades da nossa cidade, do nosso cantinho no mundo e das coisas que iramos porque com elas nos identificamos é uma prática cotidiana dos homens e mulheres comuns, e de escritores e escritoras que, na ponta das suas penas, partilham com os outros as suas emoções e sentimentos, fazendo com que eles atravessem o tempo.
O poema de Manuel Bandeira Vou-me embora para Pasárgada, um dos mais conhecidos deste poeta modernista, exalta os atributos de uma antiga cidade Persa, por ele idealizada, e que lá gostaria de estar. A Odisseia de Homero conta a jornada de Ulisses (Odisseu) e do seu desejo inabalável de retornar, após a Guerra de Tróia, para Ítaca, a sua cidade natal, a sua pátria, e encontrar a sua amada Penélope e o seu filho Telêmaco.
Em ambas as obras, mesmo separadas por séculos, há em comum a exaltação do lugar e do desejo de estar ou regressar. O poeta modernista quer ir para Pasárgada porque lá ele é amigo do Rei, terá a mulher que desejar, mas, principalmente, porque poderá relembrar das histórias do seu tempo de menino; é um lugar de reencontrar suas memórias. Ulisses também quer retornar para a sua doce Ítaca, sua pátria, um lugar pacífico, com montanhas e vegetação exuberante, um paraíso para ele.
A exaltação dos lugares que guardam nossas vivências e memórias é um exercício de amor, daqueles que prazerosamente fazemos para ativar lembranças e aguçar a curiosidade dos outros. Essa atitude torna o nosso lugar (cidade, bairro, vila, comunidade) conhecido pelos outros ou, pelo menos, por aqueles que partilham da nossa hospitalidade. E como partilhamos nossas memórias com aqueles que socialmente convivemos, há também a memória coletiva, do grupo que a vivencia, formando a identidade e o patrimônio cultural.
Contudo, a exaltação das raízes e da cultura de cada lugar, antes realizada no contexto das interações sociais dos diferentes grupos, tem ganhado tons de oficialidade em face da demasiada fetichização do Direito com base numa atividade legislativa excessiva, que ou a atribuir por meio de lei, títulos e reconhecimentos para determinados lugares, como, por exemplo, a Lei cearense que institui a denominação “Ceará, terra do humor” como patrimônio cultural deste Estado. O caso mais recente é a Lei Federal n 15.129/2025 que confere ao Município de Sena Madureira no Acre, o título de Capital Nacional da Castanha do Brasil.
As Leis desta natureza e conteúdo possuem uma efetividade questionável, pois subverte a lógica do Direito como um dever ser. Ora, se o Ceará é a terra do humor, a lei enuncia o que é e não o que deveria ser. Com isso, não precisamos de leis para dizer o que as coisas são, essas são ditas e afirmadas pelas comunidades, pelo cearense que reconhece o humor como algo inerente a sua cultura.
Então, leis desta natureza nada ou pouco agregam. Ao contrário, podem desagregar, estimular rivalidades, antes inexistentes. A Castanha do Pará, ou do Brasil ou da Amazônia se faz presente em toda a Região Amazônica, sendo um produto que muitos municípios com ela se identificam e desenvolvem sua vida econômica e cultural.
A Festa da Castanha é realizada em vários municípios no Amazonas como Tefé e Urucará e no Pará como Oriximiná. A castanha é um dos principais produtos da região, e é celebrada com apresentações culturais, concursos que destacam a atividade extrativista dos castanheiros, exposição dos produtos derivados da Castanha. Desta feita, quando o Estado interfere nestes processos, tomando partido por uma localidade, atribuindo a ela uma titulação, mesmo que simbólica, em detrimento das demais, causa desequilíbrios, acirra disputas onde deveria haver união.
O poder público não pode lidar com a cultura e o patrimônio cultural com a mesma lógica do direito privado, como se fossem bens jurídicos apropriáveis, com exclusividade, por algum grupo ou comunidade. Inúmeros são os patrimônios culturais compartilhados por diferentes países como, por exemplo, a Dieta Mediterrânea.
O Brasil precisa se inspirar na experiência internacional e desenvolver políticas culturais que unam diferentes grupos, comunidades, cidades e regiões pelos elementos culturais que possuam em comum, como a castanha, o humor, a música, a dança, os festejos, e tantos outros, ao invés de promover competições por uma ilusória exclusividade, como se outros locais também não pudessem ter o humor ou a castanha como um dos seus elementos identitários. Logo, é preciso assegurar, parafraseando León Tolstói, que todos sejam livres para cantar a sua própria aldeia.
*Allan Carlos Moreira Magalhães é doutor em Direito, professor da Universidade do Estado do Amazonas, autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo” e coautor do livro “É Disso Que o Povo Gosta: O Patrimônio Cultural no Cotidiano da Comunidade”.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.