No livro Da Minha Terra à Terra, o fotógrafo Sebastião Salgado conta como a fotografia se entrelaçou à sua vida e permitiu um encontro consigo mesmo, revelando também episódios de perseguição política e histórias marcantes de suas viagens pelo mundo, sempre com um olhar sensível aos povos e à terra. Em uma dessas histórias ele compartilha a sua relação com o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e por que se tornou um grande aliado da luta pela reforma agrária no Brasil.
Em 1996, Salgado iniciou sua aproximação com o movimento, motivado pelo interesse em compreender a questão agrária no Brasil. Desde então, acompanhou de perto a luta dos trabalhadores rurais.
Um de seus registros mais emblemáticos ocorreu na madrugada de 17 de abril daquele ano, quando mais de 3 mil famílias ocuparam a Fazenda Araupel, no Paraná. A imagem de um camponês rompendo a cerca com uma foice se tornou símbolo da resistência. Na mesma data, no Pará, aconteceria o massacre de Eldorado dos Carajás, documentado por Salgado dias depois.
Das lentes de Salgado nasceu Terra — uma coleção de imagens que percorreu o mundo e ajudou a semear um projeto concreto: a Escola Nacional Florestan Fernandes. A arrecadação da mostra foi crucial para erguer esse espaço de formação e resistência do MST, como ele conta em seu livro no capítulo "Imagens de um mundo em perigo".
"Segui suas reivindicações por quase quinze anos. [...] O MST agia legalmente e não lesava ninguém, ocupava apenas terras não cultivadas. A Constituiçõ brasileira estipula a proibição da posse de terras improdutivas. O que não impediu os grandes proprietários de infrigirem a lei: vários deles mandavam seus homens ou a polícia expulsar as famílias que ocupavam suas terras. Mesmo assim, graças ao MST, muitas dessas terras foam finalmente redistribuídas, na época, cerca de 200 mil famílias. ados quinze anos, percebi que minhas imagens contavam essa história", escreveu o fotógrafo.
"Lélia organizou então um livro, com texto de José Saramago, poemas de canções de Chico Buarque e minhas imagens. Terra foi lançado em 96, um verdadeiro manifesto escrito a quatro mãos para o MST. O objetivo era coletar fundos, mas também divulgar a história desses combatentes da terra. As exposições vendas foram organizadas na América Latina, nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia. Todos os rendimentos foram para o MST"
Na obra, Salgado também comentou sobre a fotografia produzir denúncia, memória e humanidade, para além da própria verdade, e se incluindo nas histórias retratadas pelas suas fotografias. Não apenas como um mero observador.
"Cada uma das minhas fotos é uma escolha. Mesmo em situações difíceis preciso querer estar presente e assumir essa presença. Aderindo ou não ao que está acontecendo, mas sempre sabendo por que estou ali. Seguir os sem-terra foi minha maneira de participar de seu movimento. Mostrar as imagens da fome na África, uma maneira de denunciá-la. Em toda parte, essas imagens suscitaram reações. A fotografia é uma escrita tão forte porque pode ser lida em todo o mundo sem tradução"
'Semente não morre, transforma-se'
Nesta sexta-feira (23), Sebastião Salgado morreu aos 81 anos. Em reconhecimento a sua trajetória comprometida com as causas sociais e ambientais, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) escreveu uma carta dedicada ao fotógrafo. No texto, o movimento agradece sua sensibilidade em retratar a luta pela terra com dignidade e humanidade, e destaca a importância de sua obra para dar visibilidade à realidade dos camponeses brasileiros.
Leia a íntegra da carta do MST
Uma carta para a família de Sebastião Salgado
Estimada Lélia, familiares e equipe.
Com Sebastião Salgado, sempre!
Seja como for, os deserdados da terra alimentam a esperança de dias melhores.”
(Terra, p. 141)
Recebi do MST, lá pelos idos de 1996-1997, uma atividade nobre e prazerosa. Construir, coordenar e acompanhar o processo de produção e realização da Exposição Terra. Isso permitiu compartilhar momentos inesquecíveis com Sebastião Salgado e Lélia, Chico Buarque e José Saramago. Todos, naquela altura, com a alma perada pela dor do Massacre de Eldorado do Carajás, quando tombaram 21 Sem Terra e outros 57 resultaram feridos.
Foram vários encontros na Secretaria Nacional e inclusive em seu ateliê em Paris. Da seleção das fotos sob olhar político, artístico e feminino de Lélia, dos trabalhos da equipe em Paris, do sempre presente Sebastião e as relações para produção do livro Terra, com sua impressão na Alemanha agregando qualidade impecável ao projeto editorial. Livro definido, coube selecionar as imagens para a Exposição Terra, impressa na Gráfica Burti (SP) e com segunda tiragem na gráfica Positivo (Curitiba, PR), supervisionados por Lélia.
A solidariedade se fez concreta, adquiriu forma e conteúdo. O Livro com encarte de disco e exposição fotográfica, percorreram mais de 100 países com a tarefa desenvolvida pelos comitês de solidariedade ou grupos de amigos do MST e centenas de cidades e espaços Brasil afora, envolvendo militantes das mais diversas organizações. A luta pela terra no Brasil irmanou-se aos trabalhadores do mundo.
Icônico e memorável foi o lançamento nacional do livro e da Exposição na Universidade Presbiteriana Makenzie, Brigadeiro Luiz Antônio, em São Paulo. Como havia sido palco do Comando de Caça aos Comunistas (CCCs), estudantes organizaram a segurança. Auditório lotado. Sebastião, Lélia, Chico, Saramago… descreveram o projeto e seu significado. Pela primeira vez a Bandeira do MST adentrou a instituição e foi entregue ao reitor Cláudio Lembo (PFL), “esta Bandeira será parte do acervo da instituição”, afirmou ele na época.
Ocupamos espaços da classe trabalhadora, corredores de universidades, estações de metrô, museus, casas de artes, ruas, parques… Todos os espaços ocupados não mais por “deserdados da terra”, mas por sujeitos que constroem pontes para que os sonhos se tornem realidade. E assim, em cada exposição, lá estavam os maiores valores humanistas e socialistas, o internacionalismo e a solidariedade de classe, concebidos e materializados pelos olhares de Sebastião, Lélia, Chico e Saramago.
Por decisão política do MST, os resultados econômicos da ação foram destinados ao projeto da futura Escola Nacional, posteriormente denominada Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF). Um espaço físico para vivenciar o valor da solidariedade, do estudo e do internacionalismo, forjando novos sujeitos com capacidade de intervir concretamente em realidades diversas construindo novas formas de produção e reprodução da vida, mais justa, fraterna, socialista.
Irmanado pelo sentimento de dor pela agem de Sebastião, construtor de poesia socialista pela arte da fotografia, nossos sentimentos de carinho, afeto e solidariedade. Nem tudo é ageiro nas frágeis circunstâncias da vida; algumas calam fundo na alma e nos movem a seguir na construção de dias melhores.
Saber que nestes últimos dias fui incorporado a Brigada Apolônio de Carvalho, equipe de trabalho da ENFF, lágrimas marejam os olhos, mas não impedem olhar ao futuro, onde sempre estará presente o coletivo construtor do livro e da Exposição Terra.
Semente não morre; transforma-se.
Sebastião Salgado, presente! Sempre!
Com carinho e afeição.
*Brigada Apolônio de Carvalho – ENFF-MST.