EVOLUÇÃO

Charles Darwin no Brasil: o que fascinou e horrorizou o cientista em viagem ao país

A agem do pai da teoria da evolução por terras brasileiras impactou profundamente a sua obra

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Jornalista que atua em Brasília desde 1995, tem experiência em redação, em comunicação corporativa e comunicação pública, em assessoria de imprensa, em produção de conteúdo, campanha política e em coordenação de equipes. Atuou, entre outros locais, no Governo Federal, na Presidência da República e no Ministério da Justiça; no Governo do Distrito Federal, na Secretaria de Comunicação e na Secretaria de Segurança Pública; e no Congresso Nacional, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados e na Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO).
Charles Darwin no Brasil: o que fascinou e horrorizou o cientista em viagem ao país
Charles Darwin no Brasil: o que fascinou e horrorizou o cientista em viagem ao país. A agem do pai da teoria da evolução por terras brasileiras impactou profundamente a sua obra.. Fotomontagem (Wikipedia)

A agem de Charles Darwin (1809–1882) pelo Brasil, durante a histórica expedição do HMS Beagle (1831–1836), deixou marcas profundas não apenas em sua formação científica, mas também em sua consciência moral.

Aos 22 anos, o naturalista britânico desembarcou primeiro em Salvador, em fevereiro de 1832, e depois permaneceu por cerca de três meses no Rio de Janeiro. Foi nesse contraste entre a exuberância da natureza e a brutalidade da escravidão que Darwin viveu uma das experiências mais marcantes de sua vida.

O encantamento com a natureza tropical

Logo ao chegar, o fascínio pela natureza tropical foi imediato. As florestas brasileiras o encantaram profundamente. “Incomparavelmente mais belas do que tudo o que já tinha visto”, escreveu. Durante sua estadia, coletou espécimes, observou aves, insetos, plantas e fez anotações detalhadas que, mais tarde, seriam cruciais para o desenvolvimento de sua teoria da evolução por seleção natural.

O choque com a escravidão brasileira

Mas o deslumbramento logo deu lugar à indignação. A escravidão legal e amplamente praticada no Brasil o horrorizou. Em Salvador, Darwin testemunhou cenas de violência explícita contra pessoas escravizadas. “Vi um homem bater com um chicote em uma mulher, e a cena foi tão brutal que mal pude contê-la no meu espírito”, escreveu em seu diário.

No Rio de Janeiro, onde a escravidão era ainda mais visível, ele relatou a exploração doméstica e castigos físicos, inclusive rompendo relações com um brasileiro que defendia a prática. “Julguei melhor perder sua companhia do que continuar a ouvir tamanha abominação moral”, declarou.

Registros no diário de bordo

O impacto moral da escravidão está registrado de forma contundente no Diário da Viagem do Beagle, publicado em 1839. Em diferentes trechos, Darwin expressa sua indignação:

“É impossível testemunhar essas cenas e não se encher de horror. Como um ser humano pode se considerar senhor de outro, e tratá-lo como uma besta?”

“Nada do que vi nas selvas da América do Sul — nem as feras, nem os terremotos — me causou mais espanto ou horror do que a crueldade com que os escravos eram tratados nas cidades ditas civilizadas.”

Ele também reconheceu a responsabilidade histórica britânica:

“Lembro, com vergonha, que os britânicos também foram, até pouco tempo atrás, cúmplices deste crime monstruoso. Rezo para que o dia em que a escravidão desaparecerá da face da Terra não esteja distante.”

Livro sobre Darwin no Brasil

Reprodução Duas Aspas - Darwin no Brasil – A viagem de Charles Darwin ao Brasil e suas contribuições para a teoria da evolução

Em 2023, a editora Duas Aspas lançou uma edição especial voltada ao público brasileiro: Darwin no Brasil – A viagem de Charles Darwin ao Brasil e suas contribuições para a teoria da evolução. Mais do que uma simples reedição do clássico Diário do Beagle, o livro propõe uma leitura renovada da agem do naturalista britânico pelo país, reunindo trechos selecionados de sua obra de juventude com excertos de textos mais maduros, como A Origem das Espécies.

O grande diferencial da publicação está no formato híbrido. Os relatos originais de Darwin, registrados durante a expedição a bordo do HMS Beagle, são intercalados por trechos de cartas, artigos e reflexões escritas ao longo de sua vida. Essa costura literária cria um diálogo entre o jovem explorador e o cientista consagrado, permitindo ao leitor acompanhar em tempo real a evolução de suas ideias — da curiosidade empírica à formulação teórica que revolucionaria a ciência.

Com 24 ilustrações coloridas de espécies observadas por Darwin durante sua jornada, a obra convida o público a mergulhar em uma narrativa que é ao mesmo tempo científica, histórica e sensorial. Ao adotar uma perspectiva retrospectiva, Darwin no Brasil recupera o espírito das grandes viagens do século XIX, sem abrir mão de uma análise crítica e contextualizada, à luz do conhecimento acumulado nas décadas seguintes.

“É como se o próprio Darwin, mais velho, comentasse as descobertas de sua versão mais jovem enquanto nos guia em uma jornada que mudaria para sempre o rumo da ciência”, resume o editor Pedro Alencastro, responsável pela curadoria da edição.

A jornada científica do Beagle

Reprodução Amazon - Diário da Viagem do Beagle

A bordo do HMS Beagle, Darwin integrou uma das expedições científicas mais influentes do século XIX, sob o comando do capitão Robert FitzRoy. A missão oficial da viagem, organizada pela Marinha Real Britânica, era cartografar com precisão a costa da América do Sul, corrigindo erros nos mapas náuticos e estabelecendo coordenadas para facilitar a navegação comercial e militar do Império Britânico. A presença do naturalista britânico transformaria aquela travessia em um marco da história da ciência.

A expedição zarpou de Plymouth, na Inglaterra, em 27 de dezembro de 1831, e só retornaria em 2 de outubro de 1836. Ao longo de quase cinco anos, o Beagle percorreu uma rota extensa, com escalas em locais como a Patagônia, a Cordilheira dos Andes, as Ilhas Malvinas, o arquipélago de Chiloé, o litoral do Peru, as Ilhas Galápagos, Taiti, Nova Zelândia, Austrália, Ilhas Maurício e o Cabo da Boa Esperança, na África do Sul. A riqueza geográfica, climática e biológica desses lugares ofereceu a Darwin uma variedade de ambientes para observação e coleta sem precedentes.

Wikipedia - O trajeto feito pelo HMS Beagle

Durante a jornada, o jovem naturalista fez milhares de anotações em seus cadernos de campo, coletou espécimes de animais, plantas e fósseis, e desenvolveu hipóteses iniciais sobre a origem e transformação das espécies. Em áreas da Argentina, por exemplo, ele encontrou fósseis de mamíferos gigantes — como o Megatherium, uma preguiça extinta de proporções colossais — em camadas geológicas próximas de ossadas de animais vivos semelhantes, o que levantou pela primeira vez em Darwin a suspeita de que as espécies poderiam mudar com o tempo.

A observação de formações geológicas, como depósitos sedimentares, elevações e falhas em rochas, levou Darwin a aceitar as ideias de Charles Lyell, autor de Princípios de Geologia, que defendia que mudanças lentas e graduais moldavam o planeta — o chamado uniformitarianismo. Essa noção influenciaria profundamente sua maneira de pensar sobre a evolução da vida.

Um dos pontos mais decisivos da viagem foi a estadia nas Ilhas Galápagos, em 1835. Localizadas no Oceano Pacífico, ao largo do Equador, as ilhas ofereciam um laboratório natural de biodiversidade isolada. Ali, Darwin notou que animais de uma mesma espécie — como os tentilhões — apresentavam variações de ilha para ilha. Os bicos dos pássaros variavam em forma e tamanho de acordo com o tipo de alimento predominante em cada ambiente: sementes duras, frutas, insetos ou néctar. Embora, na época, ele ainda não compreendesse totalmente o alcance dessas diferenças, mais tarde reconheceria que essa variabilidade era uma chave para compreender a adaptação ao meio e o surgimento de novas espécies.

Ao final da viagem, Darwin havia reunido um volume impressionante de observações e amostras, que levou consigo à Inglaterra. Lá, ao longo das décadas seguintes, ele organizaria esses dados e desenvolveria, com base neles, a teoria da evolução por seleção natural — uma das ideias mais transformadoras da história das ciências biológicas.

A origem de uma teoria transformadora

Reprodução Amazon - A Origem das Espécies

Em 1859, após mais de duas décadas de estudos, observações e reflexões, Darwin publicou A Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural, uma obra que viria a alterar para sempre a compreensão da vida no planeta. Nesse livro, Darwin propôs que as espécies não são fixas ou imutáveis — como se acreditava até então —, mas sim o resultado de um longo processo de mudanças graduais, impulsionado por um mecanismo que chamou de seleção natural.

Segundo essa teoria, indivíduos de uma mesma espécie apresentam variações sutis em suas características. Em ambientes desafiadores, aqueles com traços mais vantajosos — como força, agilidade, camuflagem ou capacidade de resistência — têm maiores chances de sobreviver, se reproduzir e transmitir essas características aos seus descendentes. Ao longo de milhares ou milhões de gerações, essas pequenas diferenças se acumulam, levando à transformação das espécies e até ao surgimento de novas formas de vida.

A proposta de Darwin confrontava frontalmente a visão dominante da época, baseada no criacionismo e na ideia fixista das espécies, fortemente influenciada pela leitura literal da Bíblia. Não por acaso, A Origem das Espécies gerou intensos debates, tanto no meio científico quanto religioso, dividindo opiniões entre entusiasmo, resistência e escândalo moral. Mesmo sem abordar diretamente a origem do ser humano — assunto que só enfrentaria em A Descendência do Homem (1871) —, a implicação de que o homem também compartilhava ancestrais com outros animais gerou forte repercussão pública.

Apesar das polêmicas iniciais, a teoria de Darwin se firmou como um dos pilares da ciência moderna. Ao longo das décadas, foi sendo confirmada e aprimorada por outras áreas do conhecimento. No século XX, com os avanços da genética, descobriu-se que as variações entre os indivíduos têm base no DNA, e que mutações genéticas e recombinações aleatórias também alimentam o processo de seleção natural. Essa síntese entre a biologia evolutiva e a genética ficou conhecida como teoria sintética da evolução.

A influência da teoria darwinista ultraou os limites da biologia. Ela transformou a medicina ao ajudar na compreensão da resistência bacteriana e da evolução dos vírus. Influenciou a ecologia, ao explicar a adaptação dos organismos a diferentes nichos ambientais. Contribuiu para o desenvolvimento da psicologia evolucionista e da antropologia, ao sugerir hipóteses sobre o comportamento humano e as origens da cultura. Até a linguística, a economia e a filosofia sentiram os efeitos do pensamento darwiniano.

Mais do que uma teoria sobre a vida, a proposta de Darwin introduziu uma nova forma de pensar: a ideia de que a mudança é a regra, não a exceção, e que a diversidade do mundo vivo é resultado de processos naturais, não de desígnios imutáveis. Uma visão que, apesar de resistências históricas e contemporâneas, permanece como um dos marcos mais profundos da história da ciência.

Um cientista tocado pela ética

A experiência brasileira foi um divisor de águas. Darwin não apenas observou a exuberância da natureza, mas também refletiu sobre a brutalidade humana. Suas anotações revelam um cientista atento às injustiças sociais e profundamente sensibilizado pela condição dos povos escravizados.

Mais do que uma expedição científica, a viagem do Beagle foi, para Darwin, uma travessia intelectual e ética. No Brasil, ele encontrou a beleza selvagem das florestas — mas também o horror civilizado da escravidão. E esse contraste moldou para sempre sua visão de mundo.

 

 

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