Fé contra fatos: como o criacionismo virou arma da extrema direita global
Disputa entre crença religiosa e conhecimento científico está no centro de uma batalha ideológica com implicações profundas para a educação, a política e a democracia
O criacionismo é a crença de que o universo, a Terra e todos os seres vivos foram criados por uma divindade de forma intencional e completa, tal como existem hoje. Em sua forma mais comum, baseia-se na leitura literal da Bíblia, especialmente do livro do Gênesis, que descreve a criação do mundo em seis dias.
Essa visão sustenta que a Terra tem apenas alguns milhares de anos, que os seres vivos foram criados imutáveis, e que o ser humano não descende de ancestrais comuns com outras espécies. Ao rejeitar a teoria da evolução e o conhecimento científico acumulado, o criacionismo deixa de ser apenas uma expressão de fé para se tornar um obstáculo ao pensamento crítico e ao progresso da ciência.
Origens e evolução histórica do criacionismo
Tradição bíblica e literalismo
Durante séculos, a leitura literal da Bíblia moldou a compreensão do mundo no Ocidente. No século XVII, o bispo anglicano James Ussher calculou que a criação teria ocorrido em 4004 a.C. Essa visão predominou até o advento do Iluminismo, quando as ciências naturais aram a questionar a cronologia bíblica e a investigar a origem da vida sob uma ótica empírica.
O impacto de Darwin e o embate com a ciência
Com a publicação de A Origem das Espécies em 1859, Charles Darwin propôs que as espécies evoluem por meio da seleção natural, desafiando frontalmente as ideias criacionistas. A teoria de Darwin abalou as certezas religiosas de sua época e provocou reações intensas de setores religiosos, especialmente nos Estados Unidos, onde o protestantismo fundamentalista ou a organizar campanhas sistemáticas contra o darwinismo.
O criacionismo como movimento político-religioso
O caso mais emblemático dessa reação foi o Julgamento de Scopes, em 1925, no Tennessee. John Scopes, professor acusado de violar a lei estadual ao ensinar evolução, foi condenado. O julgamento expôs a tensão entre ciência e religião, marcando o início do criacionismo como movimento organizado e com aspirações políticas nos EUA.
A reinvenção como Design Inteligente
Nas décadas seguintes, com decisões da Suprema Corte dos EUA proibindo o ensino religioso nas escolas públicas, o criacionismo ou por uma reconfiguração. Surgiu o “Design Inteligente”, uma tentativa de conferir aparência científica à ideia de que uma “inteligência superior” teria projetado os seres vivos. Apesar do verniz pseudocientífico, essa abordagem também é rejeitada pela comunidade científica internacional por carecer de método empírico e falsificabilidade.
Efeito Sputinik
O lançamento do satélite soviético Sputnik 1 em 1957 desencadeou uma corrida científica nos Estados Unidos, marcando um divisor de águas na educação. O temor de ficar atrás da União Soviética levou o governo a investir fortemente em ciência e tecnologia. Com a aprovação da National Defense Education Act (1958), o ensino de ciências e matemática ou a ser prioridade nas escolas públicas, gerando uma reformulação dos currículos e reforçando a teoria da evolução no ensino de biologia.
Esse movimento institucional enfraqueceu o avanço do criacionismo nas salas de aula. A Suprema Corte consolidou esse cenário ao declarar inconstitucionais as leis que proibiam o ensino da evolução ou exigiam o ensino do criacionismo religioso como ciência. O chamado “efeito Sputnik” não só acelerou o progresso científico, mas também ajudou a proteger a educação pública da interferência religiosa — ao menos até o ressurgimento do conservadorismo religioso nas décadas seguintes.
Criacionismo de mãos dadas com o trumpismo
A relação entre criacionismo e trumpismo expõe como visões religiosas e políticas podem se entrelaçar em um projeto ideológico que rejeita o conhecimento científico e fortalece o autoritarismo populista. Embora distintos em suas origens, criacionismo e trumpismo compartilham estratégias discursivas e objetivos políticos, como a desconfiança em relação à ciência, o apelo emocional à fé e o antagonismo às elites acadêmicas e midiáticas.
Anticientificismo como pilar comum
O criacionismo nega a biologia evolutiva, a geologia e outras áreas do saber empírico. O trumpismo amplia essa rejeição, atacando o consenso científico sobre mudanças climáticas, vacinas e até eleições. Ambos promovem a ideia de que as elites intelectuais estão conspirando contra os “valores do povo”.
Aproximação com o cristianismo evangélico conservador
Nos EUA, os grupos evangélicos literalistas são a base histórica do criacionismo e também um dos pilares eleitorais do trumpismo. Donald Trump, apesar de seu histórico secular, firmou alianças estratégicas com esses setores, prometendo defender o ensino religioso, restringir o aborto e proteger os “valores cristãos”.
Rejeição ao pensamento crítico
O ataque às universidades, à imprensa e aos cientistas é um denominador comum entre criacionistas e líderes da extrema direita. A racionalidade é substituída por discursos de fé, patriotismo e ressentimento social. Essa postura antintelectualista alimenta um terreno fértil para o negacionismo e a desinformação.
O criacionismo no Brasil
No Brasil, o criacionismo ganhou força a partir da década de 1980 com o crescimento das igrejas evangélicas neopentecostais e a presença de missões protestantes estadunidenses. A fundação da Sociedade Criacionista Brasileira, em 1972, consolidou a organização institucional da doutrina. Desde então, a entidade tem atuado na promoção de eventos, produção de materiais didáticos e pressão sobre políticas educacionais.
Criacionismo no governo Bolsonaro
Entre 2019 e 2022, sob o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, o criacionismo ou a ser instrumentalizado como ferramenta de guerra cultural. Com o discurso de resgate de “valores cristãos” e combate à “doutrinação ideológica”, o governo buscou inserir o criacionismo como “alternativa científica” à teoria da evolução nos currículos escolares, em flagrante violação ao caráter laico do Estado brasileiro.
O então ministro da Educação, Milton Ribeiro — pastor presbiteriano — foi um dos principais articuladores dessa agenda. Em entrevistas, afirmou que não acreditava na evolução e que o ser humano “não veio do macaco”. Durante sua gestão, o MEC desmobilizou áreas voltadas à pesquisa científica e incentivou conteúdos religiosos em detrimento de fundamentos científicos.
Além disso, parlamentares da base governista propam projetos de lei e audiências públicas para discutir a inclusão do criacionismo nas escolas, frequentemente em articulação com pautas como “Escola Sem Partido” e oposição à “ideologia de gênero”. Líderes evangélicos como Silas Malafaia, Marco Feliciano e Magno Malta reforçaram essa agenda nos meios religiosos e midiáticos.
As reações da comunidade científica foram contundentes. Instituições como a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e a ABC (Academia Brasileira de Ciências) divulgaram notas públicas enfatizando que o criacionismo não é ciência e não deve ser ensinado como tal. A tentativa de equiparar dogmas religiosos a teorias consolidadas coloca em risco a formação científica de milhões de estudantes e compromete a função pública da escola como espaço crítico e laico.
Como a extrema direita usa o criacionismo
Doutrinação religiosa disfarçada de pluralismo
O criacionismo é apresentado por setores da extrema direita como uma “visão alternativa” à evolução, sob a retórica do pluralismo. No entanto, essa inserção visa ocupar o espaço da educação pública com valores religiosos travestidos de ciência.
Base evangélica como ativo eleitoral
Nos EUA, Trump capitalizou o apoio de criacionistas. No Brasil, Bolsonaro adotou estratégia semelhante. Defender o criacionismo funciona como uma senha de identificação com a base evangélica conservadora.
Rejeição à ciência e avanço do obscurantismo
A negação da evolução abre caminho para outras formas de negacionismo: climático, sanitário, ambiental e político. A ciência é atacada por representar uma ameaça à narrativa única imposta por esses grupos.
Desinformação e ameaça democrática
Promovido como “ciência alternativa”, o criacionismo enfraquece o ensino científico, mina o pensamento crítico e desacredita o método empírico. Seu uso político compromete a capacidade da sociedade de enfrentar crises globais com base na razão, evidência e cooperação.
Ao se tornar um instrumento ideológico, o criacionismo transcende o âmbito da fé. Ele a a disputar a hegemonia do conhecimento, da educação e da verdade. Em tempos de emergência climática, pandemias e colapsos sociais, valorizar a ciência, proteger a laicidade e defender a liberdade de pensamento é essencial para garantir o futuro da democracia e da humanidade.